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Ilhéus pode brilhar na avenida Sapucaí, mas ainda tropeça na calçada da própria história

Ilhéus pode virar enredo da Portela no Carnaval de 2026. E por que não? Terra de Jorge Amado, do cacau, das praias estonteantes, da história de quase 500 anos, Ilhéus sempre foi cenário de grandes inspirações. Tem paisagens de novela, tem história que se confunde com a formação do Brasil, tem povo alegre e resistente, acostumado a viver entre o realismo mágico e o improviso diário. É um prato cheio para um samba que embale a Sapucaí de poesia, cor e identidade.

A notícia de que uma das mais tradicionais escolas de samba do país pode contar a história da Princesinha do Sul tem gosto doce como o fruto que um dia sustentou esse pedaço de mundo. Um orgulho para quem é daqui e para quem escolheu ser daqui. Porque se Ilhéus é bonita por natureza, é bonita mesmo por obra do povo que a habita. O povo que madruga na feira, que pega ônibus lotado, que enfeita a cidade com fé, cultura, suor e uma esperança teimosa. Esse povo é o verdadeiro enredo. É o refrão mais bonito que a Portela poderia cantar.

Mas como toda boa história brasileira, essa também tem suas contradições. Porque enquanto a cidade pode estar sendo pensada como cenário para os carros alegóricos do Carnaval do Rio, aqui mesmo buracos ainda tomam conta de algumas ruas porque tudo está sendo planejado para melhorar e renovar. Os postos de saúde ainda encontram filas intermináveis. O professor entra na sala de aula como quem pisa num terreiro sagrado, mas sem tambor, sem salário digno e reajustes adequados e o pior enfrentando muitas lutas e desafios do sistema. O transporte público é uma alegoria que nunca chega no horário, às vezes nem consegue sair da concentração. E a cidade, coitada, vai tropeçando no improviso, se bem que percebo que nesse quesito estão tentando melhorar e torço verdadeiramente por isso , enquanto as disputas políticas seguem mais animadas que qualquer comissão de frente.

O que não falta é samba no pé dos caciques locais. Uns dançam em gabinetes climatizados, outros ensaiam discursos de palanque, sempre prometendo o desfile das soluções que nunca passam pela avenida da realidade. Ilhéus, aliás, parece viver um eterno bloco dos interesses próprios, onde a fantasia vale mais do que o planejamento e a velha cultura coronelista dita o ritmo. Tudo na base do jeitinho, do acordão de bastidor, da velha troca de favores. A política, aqui, muitas vezes se confunde com teatro mambembe, só que sem o charme e com ingressos caríssimos pagos pelo povo.

Há quem acredite que um enredo na Sapucaí resolve alguma coisa. Pode até ajudar, sim. Dá visibilidade, lembrar ao Brasil que existimos, mas quem mora aqui sabe que visibilidade sem gestão vira só mais um espetáculo de fumaça (e isso vem de décadas)nada referente a política atual apenas. Ilhéus precisa mais do que aplauso de arquibancada. Precisa de cuidado diário, de gente séria com os pés no chão e os olhos no futuro. Precisa deixar de ser apenas lembrança de livro de Jorge Amado e passar a ser projeto concreto, bem escrito, com começo, meio e continuidade.

E por falar em futuro, daqui a pouco Ilhéus completará 500 anos. Um marco que deveria estar sendo pensado agora. Mas planejamento, por aqui, costuma ser uma ala que nunca sai no desfile. A cidade caminha para completar meio milênio com a mesma fantasia de sempre. Brilha no cartaz, mas tropeça no chão. E o povo, esse sim, continua a fazer milagre com pouca verba e muita dignidade. Ainda acredita. Ainda dança. Ainda canta.

Ilhéus merece o samba da Portela, assim como mereceu as telas da Globo, mas merece também ser cantada com verdade no compasso das políticas públicas. A avenida do futuro se faz com asfalto, com escola, com saneamento, com respeito, com dignidade. Que o samba venha, que os aplausos venham, mas que, principalmente, venha a consciência de que não dá mais para assistir ao desfile de promessas sentado no mesmo banco de sempre.

A festa é linda. Mas é hora de olhar os bastidores e lembrar que a verdadeira revolução começa quando cada ilheense decide não ser apenas espectador. Quando entende que defender essa terra é mais do que amar suas paisagens. É cuidar dela todos os dias. Inclusive dos que estão dentro da cidade e pensam apenas em si. Esses que se escondem atrás da bateria do poder enquanto o povo dança sozinho.

Se for para ser enredo, que seja com verdade. Se for para brilhar, que seja com justiça. Porque Ilhéus é poesia, mas também precisa virar prosa concreta. E quem sabe, um dia, ser notícia boa não só por um samba, mas por finalmente ter aprendido a se amar de verdade.




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